quinta-feira, 25 de junho de 2020

Quarentona na quarentena


Em mim, o alarme gritava: vai perder os ovos! Vai perder os ovos!
Não sei se foi sonho, mas a lembrança era forte: vai perder os ovos!

Bom dia para mim, quarentona na quarentena. Casa vazia, arrumada, como eu gostava e como eu escolhi. Abri a geladeira, peguei dois ovos e quebrei na vasilha. 
Misturei, observando o amarelo se entremear no translúcido claro, e o barulho chiado da frigideira ao receber aqueles ovos perfeitamente saudáveis. O café quente na goela umedeceu toda a secura da noite.

Menos sal e mais pimenta, para acelerar o ritmo da paradeza. Do lado de fora, na pequena varanda do apartamento, máscaras de tecido penduradas com desenhos de pintinhos amarelos, nuvens desenhadas, arco-íris coloridos.
Uma cólica remexeu minhas entranhas. Desliguei o fogão e segui para o banheiro. Enquanto urinava todo o acúmulo da noite, ouvi vindo do lado de fora as buzinas e panelas, e os gritos da ferocidade humana.

Quando me levantei, veio o sonho na lembrança ainda fresca, ao olhar praquela água avermelhada: vai perder os ovos! Vai perder os ovos! Perdi mais uma vez. Mais um mês. O som da descarga se misturou aos das buzinas, enquanto meus ovos ditos velhos se despediam ao som de ovos estragados que vagavam por aí. E para o café, ovos mexidos.

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Encontro de estações


Olhei pela vitrine do café, tantas pernas enormes lá dentro se embaralhavam em uma longa fila de desejos. Chocolate quente e um cookie com pistaches seria o meu pedido, já havia dito para mamãe. Pude ver entre todas aquelas pernas variadas as dela, no fim da fila. Aparecia pouca coisa de perna mesmo, que logo sumia embaixo da saia plissada preta. Mamãe adorava vestir preto. Eu fiquei do lado de fora, guardando um lugar com mesa para a gente. Era raro ter um momento com mamãe só pra mim, mas o vento forte estava me fazendo distrair daquela alegria, e desejei estar lá dentro me aquecendo.

Pelo reflexo do vidro, percebi uma forma corcunda se aproximando. Ao me virar, vi que era um senhor bem de idade, mais curvado que reto. Ele apoiou a mão direita sobre a mesa de pedra e olhou para mim.

Se importa se eu me sentar um pouco com você?

Assenti com a cabeça, não devia falar com estranhos, mas também não teria como fingir que não ouvi a pergunta, e aquele senhor parecia mais inofensivo do que eu. Ele sentou-se com certa dificuldade na cadeira do lado oposto da mesa, sem prestar muita atenção na minha pessoa.  Olhou para os lados da rua, depois para dentro do café, até finalmente pousar os olhos nos meus.

Você me conhece, senhorita? Perguntou ele.
Balancei com a cabeça.
Imaginei que não. Que rua é essa?

Busquei por alguma resposta na esquina mais próxima. Onde as ruas se encontravam havia um poste, com duas placas brancas no alto dele. Em letras miúdas, os nomes das ruas. Ele seguiu meus olhos, e colocou a mão no peito em busca de algo.

Acho que perdi meus óculos.
Rua das Acácias eu lhe disse, não sem antes ler em minha própria mente aquele nome.
Acácias... Não me lembro dessa rua. Você conhece aqui?
Não.
Eu também não. Não sei muito bem onde estou para lhe falar a verdade.
Eu também não, mas mamãe deve conhecer. Ela vai trazer um chocolate para mim, quer que eu peça um para o senhor?
Muito grato, mas acho que não me faria bem – respondeu ele.

Virou a cabeça observando ao redor novamente, em busca de alguma pista. Eu também procurei atrás dele, sem saber exatamente o quê.

Qual seu nome? Perguntou.
Amélie – respondi. – E o seu?
Paulo Ain.

No lado de dentro do café, pela vitrine pude notar que a quantidade de pernas aumentara, e, em meio a tantas, eu não consegui achar as de mamãe.

Aqui tem vários doces diferentes. Qual o seu favorito Paulo Ain?
Ele pensou por um momento antes de responder.
Não sei... Qual o seu?
Eu acho que é chocolate com pistaches, mas pensando melhor, poderia ser doce de leite.
Boas escolhas! Acho que poderiam ser meus favoritos também.
O senhor está sozinho aqui?
Acho que sim, não tenho muita certeza como vim pra cá.
Eu também não, estava bem sonolenta no caminho, até dormi no trem. Quando chegamos à estação, pedi à mamãe para tomarmos um chocolate quente antes de irmos para casa da minha tia. O senhor está perdido?
Parece que sim. Ao responder, o senhor Paulo Ain soltou uma risada alta que me fez rir também, mesmo sem entender — Que coisa, não... — concluiu ele.
— O que o senhor gosta de fazer? Talvez estivesse aqui bem perto, pintando, estudando, comprando algo...

Ele não respondeu de imediato, cheguei até a cogitar que não escutara e repetir a pergunta, porém não foi preciso.

Bem... Eu gosto da primavera, das flores, o orvalho logo cedo pela manhã nas folhas, jardinar. Quando eu era pequeno, ficava ajudando o meu pai com o jardim de casa, colhíamos frutas do pé e depois comíamos debaixo da árvore. Mas isso tem muito tempo. Você me faz lembrar como era a primavera Amélie. Eu acho que já virei inverno e não consigo mais sair dele. Às vezes parece que por um segundo vou resgatar tudo, mas acabo voltando.
Eu gosto do inverno, não tem aula, a gente pode dormir até tarde e ficar lendo na cama. Eu amo ler, mamãe me deu uma coleção de livros de natal, e já li cinco dos doze.

Ficamos um tempo assim, em silêncio, eu esfregava as mãos dentro das luvas para esquentá-las do vento que insistia em soprar, e ele me olhava, depois olhava para os lados, depois para lugar nenhum.

Na esquina, do outro lado da rua, notei uma moça. Parecia mais nova que mamãe, mas tinha o mesmo porte, vestia um casaco branco bem quente e uma boina vermelha. Era tão bonita, dava o ar de ter saído de dentro dos filmes. Ela estava andando de um lado para o outro, aflita como que procurando por algo. Seu olhar cruzou nossa mesa, e a vi atravessar a rua correndo em minha direção. Meu coração soou mais alto em meus ouvidos, igual quando estou prestes a levar uma bronca de mamãe, porém eu não conhecia aquela moça.

Pai! Falei para o senhor não sair de perto de mim disse ela, abraçando o senhor por trás.

As sobrancelhas dele arquearam com a surpresa do abraço. Ela deu a volta na cadeira, e ficou de frente para ele. Havia doçura em meio à preocupação no seu rosto.

Eu conheço sua voz – disse ele. Quando ela se aproximou, o senhor Paulo Ain colocou uma mão no rosto da moça, a analisando. – E conheço seu rosto.
Sou eu, papai. Camélia.
Minha primavera preferida – respondeu ele.

Camélia olhou para mim.

Desculpa pelo incômodo, querida. Você está sozinha?
Não – Pela vitrine vi mamãe a caminho da porta do café com dois copos nas mãos e uma sacolinha de papel, onde provavelmente estavam nossos cookies. – Minha mãe está chegando.
Está bem. Vamos, papai?
Ele concordou com a cabeça, e com a ajuda da filha se levantou da cadeira.
Eu li outro dia, em uma revista, que o melhor hábito para exercitar a memória é ler. Acho que o senhor nunca leu muito mesmo não. Eu lhe disse, e tirei um livro fino que tinha em minha pequena bolsa de tricô. Pode começar com esse, se quiser.

Ele esticou em direção a mim uma mão de pele fina que mostrava as veias azuis embaixo, e aceitou o presente.

Pode ser que a senhorita esteja certa... Dizem também que os velhos esquecem de propósito, para não sofrer. Seja como for, com tantos invernos, é bom ainda encontrar algumas primaveras pelo caminho. Obrigado, pequena Amélie.
De nada, senhor Paulo Ain.

Camélia acenou para mim em despedida, seu pai passou o braço por entre o dela, e eles foram caminhando pela rua, sem pressa. Em segundos alcançaram a esquina e desapareceram, enquanto mamãe surgiu e sentou-se onde antes estava o velho. Entregou-me o copo de chocolate quente, e levou o outro copo aos lábios, dando um gole do café.

Ei querida, a fila estava um horror.  Que delícia de café! — disse ela, e bebeu mais um pouco. — Demorei muito, Mel?
Foi uma boa espera, mamãe.
Ela me olhou intrigada, mas não rendemos o assunto. Definitivamente cookie de chocolate com pistache era o meu sabor favorito.




terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Degraus


Eram tantos degraus que já havia subido, que Rosa tivera que parar três vezes para recuperar o fôlego, mas a escada não chegava ao fim. Sua mão suada se misturava ao suor de tanta gente que já passara por ali, cada um com a oleosidade vinda do apoio no ônibus ou da cadeira do metrô até chegar naquele corrimão, segurando-se para não tropeçar nos degraus e cair naquele chão enlameado, ou esbarrar nas paredes sujas de pichação. O óleo de sua mão e o de mil mãos na sua a fazia largar o corrimão toda hora, mas acabava voltando para ele com os tropeços pelo caminho. Virou mais uma esquina da escada, e mais um lance de degraus apareceu em sua frente. Sentia o sol na nuca fazendo as gotas de suor escorrerem pelo pescoço até chegar na sua regata já úmida na região do tronco. Olhou para cima ainda sem conseguir enxergar o final daquilo.

Do seu lado passou um rapaz, jovem, mas não tão mais jovem que Rosa. Subiu os degraus de dois em dois ao seu lado, e antes que ela conseguisse olhar para o alto ele já havia desaparecido.

Ela não queria, pois sentia que nunca chegaria em casa, estava com fome, cansada, mas precisava parar. Por sorte nesse dia, voltando do trabalho seu patrão pediu que ela jogasse fora uma garrafa de água, e ela ao invés de fazer como mandada, encheu a garrafa e colocou na bolsa. A água a essa hora já estava quente, mas bastaria para aquele momento.

Deu um longo gole, e voltou.  Tinha a impressão que sua mão deveria estar sujando mais ainda aquele corrimão e não o inverso, porém ela precisava de um apoio. Esticou o braço sem olhar para trás e acabou trombando a mão com um homem engravatado que subia rápido a escada. Ela sentiu a unha enroscando em um fio solto do terno do homem, e sem parar ele continuou sua ascensão pela escada, levando junto um pedaço da unha de Rosa. Foi o tempo de sentir apenas o ardor do golpe. Ele não fizera de propósito, claro, mas nem ela esbarrou nele de propósito, e de alguma maneira ele desapareceu satisfeito sabe-se lá para onde enquanto agora, além de ter que subir aqueles degraus com calor, cansada, com fome, ainda tinha um dedo ensanguentado lhe acompanhando.

Que dia.

Pensou se o homem da gravata e o jovem rapaz já tinham alcançado o topo, enquanto a cada virada da escada ela só via mais degraus. Escutou alguns passos lentos atrás de si, e viu um rosto amigo. Era Mara, ela vinha em um ritmo parecido com o de Rosa, o que permitiu que as duas pudessem trocar algumas palavras.

— Difícil hein, Rosa.

—Cada dia mais, minha amiga. Como foi hoje?

— O mesmo, com o acréscimo que minha filha não dormiu a noite inteira e o pai continua sumido.  E você?

— Hoje eu trouxe uma água pelo menos, que já acabou. Fora isso, esses degraus estão cada dia mais pesados pra mim, viu?

Entre elas aproximou-se um senhor, já com cabelos brancos, os poucos que ainda restavam, e uma passada forte que deixava claro para elas a presença dele. As duas pararam, abrindo espaço, pois ele não parecia disposto a esperar, e os três não caberiam no mesmo espaço; certamente não ele com elas.

Ele tinha uma barriga avantajada que incrivelmente não parecia atrapalhá-lo em nada naquele lugar, e do jeito que veio se foi. As duas ficaram observando enquanto ele também desapareceu.

Rosa ia ter que parar de novo e percebeu que Mara tinha diminuído o passo para esperar a amiga.

— Pode ir Mara, amanhã a gente encontra. Eu vou dar uma pausa aqui.

—Tem certeza?

Com um aceno de mão, Rosa indicou para a amiga seguir, e se apoiou no corrimão, respirando forte.

— Vai, que uma de nós precisa chegar em casa hoje ainda, e acho que vai ser você!

Mara acenou, seu rosto também estava cansado, mas ela ainda tinha forças para continuar a subida e seguiu o conselho da amiga.

Rosa olhou para trás, e viu apenas uma escuridão para cima, mal podia ver muito longe só reparando agora que não sentia mais o sol na nuca, era noite. Ela continuou, até começar a sentir o ar frio em seu rosto. Aquilo lhe deu o ânimo final que faltava, e puxando o próprio peso com a ajuda do corrimão ela alcançou a noite vazia.

Mais alguns passos, e estava no ponto de ônibus, sem acreditar nos seus olhos quando leu o número brilhante naquele gigante azul que se aproximava. Sim, era o seu ônibus, mesmo tão cansada, ela reconhecia a sorte de chegar ali em tempo de não perdê-lo.

O ônibus de aproximou, ela esticou o braço acenando para que ele parasse, notando os pontos avermelhados, quase pretos, de sangue seco no dedo, e à medida que o gigante se aproximou, ela se ajeitou para não perder tempo e entrar nele, quando percebeu que o motorista não estava diminuindo a velocidade. Ao passar em sua frente, ela entendeu o porquê: estava lotado de jovens rapazes, executivos engravatados e senhores grisalhos. Não havia espaço para ela, ou ao menos ela não iria descobrir se havia.

Ele passou reto, e agora ela teria que aguardar mais um pouco, assim como foi para sua avó, para sua mãe e como provavelmente seria para suas filhas.













Fotografia: Luis Ritter

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Uma pausa, respira: inspire-se!


                          Uma Vela para Dario

de Dalton Trevisan


Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo. 

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. 

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. 

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. 

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. 

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. 

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. 

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. 

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. 

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. 

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. 

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. 

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. 

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair. 


Texto extraído do livro 
"Vinte Contos Menores",  Editora Record – Rio de Janeiro, 1979.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Fazendo obra: cada dia é um 7x1 diferente

Ao som de um bolero, não, ao som da serra elétrica. Não. Demorei a entender que o que infiltrava meu cérebro tão cedo de manhã era a furadeira dos armários que chegaram. A mudança que nunca acabava, e a luz no final do túnel de uma gestação conturbada e repleta de poeira que vivi nos últimos nove meses finalmente parecia chegar ao fim. Ou assim pensei.

Ao abrir a porta não foi o choque de luz que fez minhas pupilas implorarem para serem fechadas novamente. Para cada olho que não queria abrir, um motivo com nome e sobrenome: o Pateta e o Palhaço. Ficarei devendo os sobrenomes. Sabe como é: a irritação já tinha partido para apelidos que apaziguassem a raiva. Um, dois, três, com mais calma segui para a cozinha.

Tomaram meu café, e nem para lavar a xícara. Quatro, cinco, seis. Respira.

Um estrondo cortou o ar. Mitra, minha gata, apareceu correndo, descendo as escadas como um relâmpago, fazendo suas manchas virarem apenas um borrão na sala, por alguns segundos. Quando ela parou, só pude dizer: conte até dez e respira fundo, meu amor.

Seu pelo eriçado abaixou um pouco com o som da minha voz, no entanto deixou os rastros na espinha dorsal da gata, assim como os meus. Não ia dar para fugir, eu ia ter que encarar. No caminho para onde veio o estrondo, pela porta aberta do quarto pude ver que já haviam instalado as portas dos armários do meu quarto. Bom sinal, eu poderia ao menos trocar de roupa e adiar por alguns minutos o encontro. As portas pretas, altas, bonitas e imponentes, novinhas. Cheias de arranhados brancos. Como? Sim. Difícil. Beirando o impossível. Alguém poderia argumentar: Acontece! Foi o que eu pensei também, na primeira vez! Agora, na terceira, nem tanto...

Meu vizinho ainda estava eufórico por causa do jogo do Cruzeiro que acontecera na noite anterior. O escutei falando ao telefone com um amigo, urros de satisfação com o gol que bateu na trave, e contra todas as chances a bola entrou, e o campeão voltou. Não saberia ao certo descrever. Só sei que três vezes vieram trocar as portas manchadas. Por outras três portas arranhadas.

Troquei-me e subi cada degrau como se fosse o Everest, em direção aos armários da sala. Faltando três para chegar, congelei, como se uma avalanche se aproximasse. Não estava preparada e sabia. Sete, oito, nove. Com um impulso contra todo o instinto em meu corpo de fugir para sobreviver subi mais um degrau, e o outro, e o outro.

Não sei se o choque que foi grande demais, mas a expectativa versus a realidade contrastou de tal maneira que até engasguei. Por sorte, o corrimão ao meu lado impediu que eu caísse escada abaixo antes de ver um milagre.  Um belo armário cobria a parede da sala, nenhuma porta arranhada. Nenhuma mancha. Boa escolha, bela cor, excelente tamanho. Parecia que eu também, depois de meses, havia feito um gol.

Foi quando notei: o Pateta e o Palhaço estavam do lado, sorrindo meia boca, tentando disfarçar algo indisfarçável. Atrás deles estava a porta, sim, eu disse uma porta inteira de vidro, rachada ao meio de fora a fora, segurada apenas pela boa vontade do ar.

Não importava o Cruzeiro, o Atlético, ou os fulanos todos do futebol. Eu estava vivendo meu próprio 7 a 1, e ele estava sem data pra acabar.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Tal do Tempo

Um dia fiquei sabendo que meu avô estava morrendo. Era oficial. 
Não estranhe minha maneirar de falar mas, com 98 anos, era impossível não ficarem todos com uma pontinha de si aguardando o finalmente.

Em julho fui visitá-lo e por coincidência Dona Aracy morreu naquele fim de semana. Era uma senhora, conhecida de todos da cidade e amiga de vários. Tentamos não contar pro vovô o acontecimento, mas sabe como é cidade de interior: quando menos se espera, um carro de som BERRA na porta de todas as casas o acontecimento e o agradecimento da família. Conseguimos desviá-lo das primeiras vezes que o carro com o anúncio passou na casa de vô, mas na décima vez não teve jeito.
“Aracy morreu? ...”

O silêncio reinou na sala, não tinha mais como negar, e sendo mais uma de suas amigas, conhecidos de longa data, e das últimas que restavam pra compartilhar de uma vida distante, outro século, outra história, só nos restou mesmo o silêncio.
Não esqueço dele parado no meio da sala apoiado em sua bengala, e a feição que deixava claro seu pensamento: “Mais um...”

Alguns meses depois voltei lá para passar o natal com a família e, claro, com o mais importante de todos, meu avô.
Nossa família é enorme e, entre barulhos, risadas, cervejas e leitões à pururuca escutava-se muitos sussurros de “...esse deve ser nosso último natal aqui...”. 
Do vovô: só veio o silêncio.

Em sua poltrona já gasta e sem cor, ele fez uso de poucas e raras palavras. Não por dificuldade! Meu avô era feito de 98 anos de história e uma língua afiadíssima. Tão afiada que na hora de despedirmos, meu pai disse: “Setembro estou de volta, Seu Florival”, no que vô rebateu: “Você fique à vontade para voltar, mas eu já terei cascado fora!”
Eu ri, achei hilário. Talvez tenha sido um riso de nervoso também.  

No dia anterior havia comentado com um tio que não preciso viver tanto assim, fato que sempre acreditei. (Sou um tanto quanto melancólica, dessa tal de geração Rivotril, com todas as facilidades do mundo e eternamente numa crise existencial.)

Ouvi então, a única resposta que mudou meu pensamento até hoje, talvez por ter vindo com uma sinceridade intensa de quem já chegou nesse ponto: “Quando você chegar nos 60 vai ver que quer sim, viver o máximo de tempo que te permitirem.”
No silêncio do vô, talvez fosse isso que pairava no ar: Um desejo por mais tempo, misturado na exaustão de estar aqui há tanto tempo.

Em fevereiro ele se foi. Foi contar uns bons causos para Dona Aracy, e matar a saudade da minha avó, que há muito o aguardava. 
E pra gente, resta esperar, e lembrar sua risada que ecoa, lá longe, em Espinosa.

"As andorinhas voltaram
E eu também voltei
Pousar no velho ninho
Que um dia aqui deixei..."


segunda-feira, 15 de maio de 2017

Por que só eu falo o tempo todo???


Ok, pedi aos universitários para ajudar nessa!!

Dos primeiros leitores do livro Nem Fred explica recebi uma resenha do livro vinda de outros olhos, porque cada um vê de um jeito, né! 

E veio tão sincera e generosa que eu quase chorei.

“Depois de uma tragédia familiar, um filho adulto se vê diante de seus traumas devido ao ocorrido e a dificuldade de seguir com a vida e seus relacionamentos, trabalho, sentimentos internos e dilacerantes que o faz percorrer com resistência esses conflitos internos.
Nesta história farta de sentimentos e expectativa, somos levados ao desejo do personagem de resolver seus mais íntimos desejos, bloqueados até então devido à força de seus sentidos e, ao mesmo tempo, à racionalidade da vida cotidiana.

Uma narrativa poderosa e repleta de grande mobilidade, onde urge como fogo a necessidade mais complexa do ser humano, de sentir a chama da vida e a liquidez de seus temores para chegar numa melhor forma de viver e sentir, com o amor de quem o conhece e o esclarecimento dos mais altos sentimentos humanos”. 
Marisa Antunes é psicóloga e leitora voraz.