Toda vez que eu ouvia
uma freada meu coração disparava. Podia estar fora de vista, em outro
quarteirão, mas aquele som. Nossa. Sempre fora um aperto.
Provavelmente pela
lembrança que tudo pode acabar de repente. Atravessando uma rua, tropeçando em
uma escada. Tantas histórias de pessoas que se foram por um pequeno, micro descuido.
E nem dá pra saber se o erro fora delas, afinal, ele amarrou o sapato antes de
sair. Mas o cadarço afrouxou com os passos.
Naquele dia, a freada
foi para mim. Foi em mim.
Horas depois acordei em
uma cama, desnorteada por um momento até que a dor me lembrou de tudo.
Caminhão. Moto. Eu entre eles. E tive sorte, cada um foi para um lado e eu
fiquei na fresta do meio, mas a moto escorregou em minha direção e na queda
bati a cabeça. Incrível, o universo tem dessas coisas: eles fizeram o mais
difícil que foi desviar, mas ninguém anula a gravidade ou a inércia.
Uma cabeça farta de
cabelos mexia atrás do balcão, possivelmente algum enfermeiro. Senti que já o
conhecia. Era só acenar que daria tudo certo, eu sei que mal havia acordado, mas
não via a hora de ir pra casa. Comer a comida da minha mãe. Ouvir as risadas do
meu pai.
A cabeça no balcão
olhou para mim. Com o uniforme verde, não pude concluir o seu cargo, só sabia
que ele trabalhava ali e isso me bastava. Mas ele não veio. Eu mostrei que
estava acordada, que queria falar, para tirarem esse tubo irritante da minha
boca. Mesmo assim ele não veio.
- Ei! Moço!
Ele abaixou os olhos e
continuou fazendo qualquer outra coisa.
Como assim? Que rude.
Um som de apito me
chamou a atenção. Era a maquininha ao lado da cama. Do outro lado, outra que
fazia o som do Darth Vader. Será que foi dali que o George Lucas criou o som do
Darth? Guardaria aquilo para pensar depois, estava tão cansada.
Falando nisso: Luke,
cadê meu pai? E minha mãe... Coitados, mais uma dor de cabeça para eles nesse
fim de ano, já estamos com tantas contas para pagar. Vão ter o maior susto
quando souberem. Devem estar chegando.
Engraçado, o Darth
movimentava no ritmo do meu peito, com uma mola inflável que levantava e
descia. E quanto mais ele levantava e descia mais parecia que comandava aquela
sala inteira. E eu.
Não tão engraçado.
Será que eu tive sorte?
Minha cabeça pesava, vontade de dormir, mas o Darth não deixava com seu chiado
constante.
-Mãe!
Vi seu cabelo ruivo
grisalho passando pela porta, olhando pra mim, mas ela não entrou. Parecia tão
envelhecida. E triste. Meu pai apareceu em seguida, não sei se cheguei a vê-lo
ou só senti seu cheiro no ar. Cheiro de jardim... Devia estar mexendo nas
plantas quando recebeu a ligação.
Que vontade de dormir.
Queria ouvir sua
risada, parece que há anos que não os vejo...
Acho que vou dormir, só
um pouquinho... Um apito distante incomodava minha cabeça, ao menos o Darth
parou de chiar. Será que eles sentirão minha falta enquanto fico nesse lugar?
Ao menos não deixei a cama bagunçada, menos um trabalho para minha mãe. Ok, a
partir de agora serei mais exemplar, vou tirar notas boas e quando casar darei
o neto que ela sempre quis. Combinado. E vou fazer aquele álbum de fotos que
venho prometendo há séculos pro meu pai.
Só tenho que lembrar de
acordar mais tarde, quero vê-los com mais calma, pensar em uma piada pro meu
pai, saindo daqui não enrolo mais minha irmã e finalmente terminaremos de
assistir Starwars. Só preciso dormir
um pouco antes.
Às vezes acho que
poderia dormir aqui para sempre, será que eles sentiriam minha falta como eu a
deles...