terça-feira, 22 de novembro de 2016

Sentirão minha falta quando eu me for?


 Toda vez que eu ouvia uma freada meu coração disparava. Podia estar fora de vista, em outro quarteirão, mas aquele som. Nossa. Sempre fora um aperto.

Provavelmente pela lembrança que tudo pode acabar de repente. Atravessando uma rua, tropeçando em uma escada. Tantas histórias de pessoas que se foram por um pequeno, micro descuido. E nem dá pra saber se o erro fora delas, afinal, ele amarrou o sapato antes de sair. Mas o cadarço afrouxou com os passos.

Naquele dia, a freada foi para mim. Foi em mim.

Horas depois acordei em uma cama, desnorteada por um momento até que a dor me lembrou de tudo. Caminhão. Moto. Eu entre eles. E tive sorte, cada um foi para um lado e eu fiquei na fresta do meio, mas a moto escorregou em minha direção e na queda bati a cabeça. Incrível, o universo tem dessas coisas: eles fizeram o mais difícil que foi desviar, mas ninguém anula a gravidade ou a inércia.

Uma cabeça farta de cabelos mexia atrás do balcão, possivelmente algum enfermeiro. Senti que já o conhecia. Era só acenar que daria tudo certo, eu sei que mal havia acordado, mas não via a hora de ir pra casa. Comer a comida da minha mãe. Ouvir as risadas do meu pai.

A cabeça no balcão olhou para mim. Com o uniforme verde, não pude concluir o seu cargo, só sabia que ele trabalhava ali e isso me bastava. Mas ele não veio. Eu mostrei que estava acordada, que queria falar, para tirarem esse tubo irritante da minha boca. Mesmo assim ele não veio.

- Ei! Moço!

Ele abaixou os olhos e continuou fazendo qualquer outra coisa.

Como assim? Que rude.

Um som de apito me chamou a atenção. ­­Era a maquininha ao lado da cama. Do outro lado, outra que fazia o som do Darth Vader. Será que foi dali que o George Lucas criou o som do Darth? Guardaria aquilo para pensar depois, estava tão cansada.

Falando nisso: Luke, cadê meu pai? E minha mãe... Coitados, mais uma dor de cabeça para eles nesse fim de ano, já estamos com tantas contas para pagar. Vão ter o maior susto quando souberem. Devem estar chegando.

Engraçado, o Darth movimentava no ritmo do meu peito, com uma mola inflável que levantava e descia. E quanto mais ele levantava e descia mais parecia que comandava aquela sala inteira. E eu.

Não tão engraçado.

Será que eu tive sorte? Minha cabeça pesava, vontade de dormir, mas o Darth não deixava com seu chiado constante.

-Mãe!

Vi seu cabelo ruivo grisalho passando pela porta, olhando pra mim, mas ela não entrou. Parecia tão envelhecida. E triste. Meu pai apareceu em seguida, não sei se cheguei a vê-lo ou só senti seu cheiro no ar. Cheiro de jardim... Devia estar mexendo nas plantas quando recebeu a ligação.

Que vontade de dormir.

Queria ouvir sua risada, parece que há anos que não os vejo...

Acho que vou dormir, só um pouquinho... Um apito distante incomodava minha cabeça, ao menos o Darth parou de chiar. Será que eles sentirão minha falta enquanto fico nesse lugar? Ao menos não deixei a cama bagunçada, menos um trabalho para minha mãe. Ok, a partir de agora serei mais exemplar, vou tirar notas boas e quando casar darei o neto que ela sempre quis. Combinado. E vou fazer aquele álbum de fotos que venho prometendo há séculos pro meu pai.

Só tenho que lembrar de acordar mais tarde, quero vê-los com mais calma, pensar em uma piada pro meu pai, saindo daqui não enrolo mais minha irmã e finalmente terminaremos de assistir Starwars. Só preciso dormir um pouco antes.

Às vezes acho que poderia dormir aqui para sempre, será que eles sentiriam minha falta como eu a deles...