Olhei pela vitrine do café, tantas pernas
enormes lá dentro se embaralhavam em uma longa fila de desejos. Chocolate quente
e um cookie com pistaches seria o meu pedido, já havia dito para mamãe. Pude
ver entre todas aquelas pernas variadas as dela, no fim da fila. Aparecia pouca
coisa de perna mesmo, que logo sumia embaixo da saia plissada preta. Mamãe
adorava vestir preto. Eu fiquei do lado de fora, guardando um lugar com mesa
para a gente. Era raro ter um momento com mamãe só pra mim, mas o vento forte
estava me fazendo distrair daquela alegria, e desejei estar lá dentro me
aquecendo.
Pelo reflexo do vidro, percebi uma forma
corcunda se aproximando. Ao me virar, vi que era um senhor bem de idade, mais
curvado que reto. Ele apoiou a mão direita sobre a mesa de pedra e olhou para
mim.
— Se importa
se eu me sentar um pouco com você?
Assenti com a cabeça, não devia falar com
estranhos, mas também não teria como fingir que não ouvi a pergunta, e aquele
senhor parecia mais inofensivo do que eu. Ele sentou-se com certa dificuldade
na cadeira do lado oposto da mesa, sem prestar muita atenção na minha pessoa. Olhou para os lados da rua, depois para dentro
do café, até finalmente pousar os olhos nos meus.
— Você me
conhece, senhorita? — Perguntou ele.
Balancei com a cabeça.
— Imaginei
que não. Que rua é essa?
Busquei por alguma resposta na esquina mais
próxima. Onde as ruas se encontravam havia um poste, com duas placas brancas no
alto dele. Em letras miúdas, os nomes das ruas. Ele seguiu meus olhos, e
colocou a mão no peito em busca de algo.
— Acho que
perdi meus óculos.
— Rua das
Acácias — eu lhe
disse, não sem antes ler em minha própria mente aquele nome.
— Acácias...
Não me lembro dessa rua. Você conhece aqui?
— Não.
— Eu também
não. Não sei muito bem onde estou para lhe falar a verdade.
— Eu também
não, mas mamãe deve conhecer. Ela vai trazer um chocolate para mim, quer que eu
peça um para o senhor?
— Muito grato,
mas acho que não me faria bem – respondeu ele.
Virou a cabeça observando ao redor novamente,
em busca de alguma pista. Eu também procurei atrás dele, sem saber exatamente o
quê.
— Qual seu
nome? — Perguntou.
— Amélie –
respondi. – E o seu?
— Paulo Ain.
No lado de dentro do café, pela vitrine pude
notar que a quantidade de pernas aumentara, e, em meio a tantas, eu não
consegui achar as de mamãe.
— Aqui tem
vários doces diferentes. Qual o seu favorito Paulo Ain?
Ele pensou por um momento antes de responder.
— Não sei... Qual
o seu?
— Eu acho que
é chocolate com pistaches, mas pensando melhor, poderia ser doce de leite.
— Boas
escolhas! Acho que poderiam ser meus favoritos também.
— O senhor
está sozinho aqui?
— Acho que
sim, não tenho muita certeza como vim pra cá.
— Eu também
não, estava bem sonolenta no caminho, até dormi no trem. Quando chegamos à
estação, pedi à mamãe para tomarmos um chocolate quente antes de irmos para
casa da minha tia. O senhor está perdido?
— Parece que
sim. —
Ao
responder, o senhor Paulo Ain soltou uma risada alta que me fez rir também,
mesmo sem entender — Que coisa, não... —
concluiu ele.
— O
que o senhor gosta de fazer? Talvez estivesse aqui bem perto, pintando,
estudando, comprando algo...
Ele não respondeu de imediato, cheguei até a
cogitar que não escutara e repetir a pergunta, porém não foi preciso.
— Bem... Eu gosto
da primavera, das flores, o orvalho logo cedo pela manhã nas folhas, jardinar. Quando
eu era pequeno, ficava ajudando o meu pai com o jardim de casa, colhíamos
frutas do pé e depois comíamos debaixo da árvore. Mas isso tem muito tempo. Você
me faz lembrar como era a primavera Amélie. Eu acho que já virei inverno e não
consigo mais sair dele. Às vezes parece que por um segundo vou resgatar tudo,
mas acabo voltando.
— Eu gosto do
inverno, não tem aula, a gente pode dormir até tarde e ficar lendo na cama. Eu
amo ler, mamãe me deu uma coleção de livros de natal, e já li cinco dos doze.
Ficamos um tempo assim, em silêncio, eu
esfregava as mãos dentro das luvas para esquentá-las do vento que insistia em
soprar, e ele me olhava, depois olhava para os lados, depois para lugar nenhum.
Na esquina, do outro lado da rua, notei uma
moça. Parecia mais nova que mamãe, mas tinha o mesmo porte, vestia um casaco
branco bem quente e uma boina vermelha. Era tão bonita, dava o ar de ter saído
de dentro dos filmes. Ela estava andando de um lado para o outro, aflita como
que procurando por algo. Seu olhar cruzou nossa mesa, e a vi atravessar a rua
correndo em minha direção. Meu coração soou mais alto em meus ouvidos, igual quando
estou prestes a levar uma bronca de mamãe, porém eu não conhecia aquela moça.
— Pai! Falei
para o senhor não sair de perto de mim — disse ela,
abraçando o senhor por trás.
As sobrancelhas dele arquearam com a surpresa
do abraço. Ela deu a volta na cadeira, e ficou de frente para ele. Havia doçura
em meio à preocupação no seu rosto.
— Eu conheço
sua voz – disse ele. Quando ela se aproximou, o senhor Paulo Ain colocou uma
mão no rosto da moça, a analisando. – E conheço seu rosto.
— Sou eu,
papai. Camélia.
— Minha
primavera preferida – respondeu ele.
Camélia olhou para mim.
— Desculpa
pelo incômodo, querida. Você está sozinha?
— Não – Pela
vitrine vi mamãe a caminho da porta do café com dois copos nas mãos e uma
sacolinha de papel, onde provavelmente estavam nossos cookies. – Minha mãe está
chegando.
— Está bem.
Vamos, papai?
Ele concordou com a cabeça, e com a ajuda da
filha se levantou da cadeira.
— Eu li outro
dia, em uma revista, que o melhor hábito para exercitar a memória é ler. Acho
que o senhor nunca leu muito mesmo não. — Eu lhe
disse, e tirei um livro fino que tinha em minha pequena bolsa de tricô. — Pode
começar com esse, se quiser.
Ele esticou em direção a mim uma mão de pele
fina que mostrava as veias azuis embaixo, e aceitou o presente.
— Pode ser
que a senhorita esteja certa... Dizem também que os velhos esquecem de
propósito, para não sofrer. Seja como for, com tantos invernos, é bom ainda encontrar
algumas primaveras pelo caminho. Obrigado, pequena Amélie.
— De nada, senhor
Paulo Ain.
Camélia acenou para mim em despedida, seu pai
passou o braço por entre o dela, e eles foram caminhando pela rua, sem pressa. Em
segundos alcançaram a esquina e desapareceram, enquanto mamãe surgiu e sentou-se
onde antes estava o velho. Entregou-me o copo de chocolate quente, e levou o
outro copo aos lábios, dando um gole do café.
— Ei querida,
a fila estava um horror. Que delícia de
café! — disse ela, e bebeu mais um pouco. — Demorei
muito, Mel?
— Foi uma boa
espera, mamãe.
Ela me olhou intrigada, mas não rendemos o
assunto. Definitivamente cookie de chocolate com pistache era o meu sabor
favorito.