segunda-feira, 16 de julho de 2018

Encontro de estações


Olhei pela vitrine do café, tantas pernas enormes lá dentro se embaralhavam em uma longa fila de desejos. Chocolate quente e um cookie com pistaches seria o meu pedido, já havia dito para mamãe. Pude ver entre todas aquelas pernas variadas as dela, no fim da fila. Aparecia pouca coisa de perna mesmo, que logo sumia embaixo da saia plissada preta. Mamãe adorava vestir preto. Eu fiquei do lado de fora, guardando um lugar com mesa para a gente. Era raro ter um momento com mamãe só pra mim, mas o vento forte estava me fazendo distrair daquela alegria, e desejei estar lá dentro me aquecendo.

Pelo reflexo do vidro, percebi uma forma corcunda se aproximando. Ao me virar, vi que era um senhor bem de idade, mais curvado que reto. Ele apoiou a mão direita sobre a mesa de pedra e olhou para mim.

Se importa se eu me sentar um pouco com você?

Assenti com a cabeça, não devia falar com estranhos, mas também não teria como fingir que não ouvi a pergunta, e aquele senhor parecia mais inofensivo do que eu. Ele sentou-se com certa dificuldade na cadeira do lado oposto da mesa, sem prestar muita atenção na minha pessoa.  Olhou para os lados da rua, depois para dentro do café, até finalmente pousar os olhos nos meus.

Você me conhece, senhorita? Perguntou ele.
Balancei com a cabeça.
Imaginei que não. Que rua é essa?

Busquei por alguma resposta na esquina mais próxima. Onde as ruas se encontravam havia um poste, com duas placas brancas no alto dele. Em letras miúdas, os nomes das ruas. Ele seguiu meus olhos, e colocou a mão no peito em busca de algo.

Acho que perdi meus óculos.
Rua das Acácias eu lhe disse, não sem antes ler em minha própria mente aquele nome.
Acácias... Não me lembro dessa rua. Você conhece aqui?
Não.
Eu também não. Não sei muito bem onde estou para lhe falar a verdade.
Eu também não, mas mamãe deve conhecer. Ela vai trazer um chocolate para mim, quer que eu peça um para o senhor?
Muito grato, mas acho que não me faria bem – respondeu ele.

Virou a cabeça observando ao redor novamente, em busca de alguma pista. Eu também procurei atrás dele, sem saber exatamente o quê.

Qual seu nome? Perguntou.
Amélie – respondi. – E o seu?
Paulo Ain.

No lado de dentro do café, pela vitrine pude notar que a quantidade de pernas aumentara, e, em meio a tantas, eu não consegui achar as de mamãe.

Aqui tem vários doces diferentes. Qual o seu favorito Paulo Ain?
Ele pensou por um momento antes de responder.
Não sei... Qual o seu?
Eu acho que é chocolate com pistaches, mas pensando melhor, poderia ser doce de leite.
Boas escolhas! Acho que poderiam ser meus favoritos também.
O senhor está sozinho aqui?
Acho que sim, não tenho muita certeza como vim pra cá.
Eu também não, estava bem sonolenta no caminho, até dormi no trem. Quando chegamos à estação, pedi à mamãe para tomarmos um chocolate quente antes de irmos para casa da minha tia. O senhor está perdido?
Parece que sim. Ao responder, o senhor Paulo Ain soltou uma risada alta que me fez rir também, mesmo sem entender — Que coisa, não... — concluiu ele.
— O que o senhor gosta de fazer? Talvez estivesse aqui bem perto, pintando, estudando, comprando algo...

Ele não respondeu de imediato, cheguei até a cogitar que não escutara e repetir a pergunta, porém não foi preciso.

Bem... Eu gosto da primavera, das flores, o orvalho logo cedo pela manhã nas folhas, jardinar. Quando eu era pequeno, ficava ajudando o meu pai com o jardim de casa, colhíamos frutas do pé e depois comíamos debaixo da árvore. Mas isso tem muito tempo. Você me faz lembrar como era a primavera Amélie. Eu acho que já virei inverno e não consigo mais sair dele. Às vezes parece que por um segundo vou resgatar tudo, mas acabo voltando.
Eu gosto do inverno, não tem aula, a gente pode dormir até tarde e ficar lendo na cama. Eu amo ler, mamãe me deu uma coleção de livros de natal, e já li cinco dos doze.

Ficamos um tempo assim, em silêncio, eu esfregava as mãos dentro das luvas para esquentá-las do vento que insistia em soprar, e ele me olhava, depois olhava para os lados, depois para lugar nenhum.

Na esquina, do outro lado da rua, notei uma moça. Parecia mais nova que mamãe, mas tinha o mesmo porte, vestia um casaco branco bem quente e uma boina vermelha. Era tão bonita, dava o ar de ter saído de dentro dos filmes. Ela estava andando de um lado para o outro, aflita como que procurando por algo. Seu olhar cruzou nossa mesa, e a vi atravessar a rua correndo em minha direção. Meu coração soou mais alto em meus ouvidos, igual quando estou prestes a levar uma bronca de mamãe, porém eu não conhecia aquela moça.

Pai! Falei para o senhor não sair de perto de mim disse ela, abraçando o senhor por trás.

As sobrancelhas dele arquearam com a surpresa do abraço. Ela deu a volta na cadeira, e ficou de frente para ele. Havia doçura em meio à preocupação no seu rosto.

Eu conheço sua voz – disse ele. Quando ela se aproximou, o senhor Paulo Ain colocou uma mão no rosto da moça, a analisando. – E conheço seu rosto.
Sou eu, papai. Camélia.
Minha primavera preferida – respondeu ele.

Camélia olhou para mim.

Desculpa pelo incômodo, querida. Você está sozinha?
Não – Pela vitrine vi mamãe a caminho da porta do café com dois copos nas mãos e uma sacolinha de papel, onde provavelmente estavam nossos cookies. – Minha mãe está chegando.
Está bem. Vamos, papai?
Ele concordou com a cabeça, e com a ajuda da filha se levantou da cadeira.
Eu li outro dia, em uma revista, que o melhor hábito para exercitar a memória é ler. Acho que o senhor nunca leu muito mesmo não. Eu lhe disse, e tirei um livro fino que tinha em minha pequena bolsa de tricô. Pode começar com esse, se quiser.

Ele esticou em direção a mim uma mão de pele fina que mostrava as veias azuis embaixo, e aceitou o presente.

Pode ser que a senhorita esteja certa... Dizem também que os velhos esquecem de propósito, para não sofrer. Seja como for, com tantos invernos, é bom ainda encontrar algumas primaveras pelo caminho. Obrigado, pequena Amélie.
De nada, senhor Paulo Ain.

Camélia acenou para mim em despedida, seu pai passou o braço por entre o dela, e eles foram caminhando pela rua, sem pressa. Em segundos alcançaram a esquina e desapareceram, enquanto mamãe surgiu e sentou-se onde antes estava o velho. Entregou-me o copo de chocolate quente, e levou o outro copo aos lábios, dando um gole do café.

Ei querida, a fila estava um horror.  Que delícia de café! — disse ela, e bebeu mais um pouco. — Demorei muito, Mel?
Foi uma boa espera, mamãe.
Ela me olhou intrigada, mas não rendemos o assunto. Definitivamente cookie de chocolate com pistache era o meu sabor favorito.




terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Degraus


Eram tantos degraus que já havia subido, que Rosa tivera que parar três vezes para recuperar o fôlego, mas a escada não chegava ao fim. Sua mão suada se misturava ao suor de tanta gente que já passara por ali, cada um com a oleosidade vinda do apoio no ônibus ou da cadeira do metrô até chegar naquele corrimão, segurando-se para não tropeçar nos degraus e cair naquele chão enlameado, ou esbarrar nas paredes sujas de pichação. O óleo de sua mão e o de mil mãos na sua a fazia largar o corrimão toda hora, mas acabava voltando para ele com os tropeços pelo caminho. Virou mais uma esquina da escada, e mais um lance de degraus apareceu em sua frente. Sentia o sol na nuca fazendo as gotas de suor escorrerem pelo pescoço até chegar na sua regata já úmida na região do tronco. Olhou para cima ainda sem conseguir enxergar o final daquilo.

Do seu lado passou um rapaz, jovem, mas não tão mais jovem que Rosa. Subiu os degraus de dois em dois ao seu lado, e antes que ela conseguisse olhar para o alto ele já havia desaparecido.

Ela não queria, pois sentia que nunca chegaria em casa, estava com fome, cansada, mas precisava parar. Por sorte nesse dia, voltando do trabalho seu patrão pediu que ela jogasse fora uma garrafa de água, e ela ao invés de fazer como mandada, encheu a garrafa e colocou na bolsa. A água a essa hora já estava quente, mas bastaria para aquele momento.

Deu um longo gole, e voltou.  Tinha a impressão que sua mão deveria estar sujando mais ainda aquele corrimão e não o inverso, porém ela precisava de um apoio. Esticou o braço sem olhar para trás e acabou trombando a mão com um homem engravatado que subia rápido a escada. Ela sentiu a unha enroscando em um fio solto do terno do homem, e sem parar ele continuou sua ascensão pela escada, levando junto um pedaço da unha de Rosa. Foi o tempo de sentir apenas o ardor do golpe. Ele não fizera de propósito, claro, mas nem ela esbarrou nele de propósito, e de alguma maneira ele desapareceu satisfeito sabe-se lá para onde enquanto agora, além de ter que subir aqueles degraus com calor, cansada, com fome, ainda tinha um dedo ensanguentado lhe acompanhando.

Que dia.

Pensou se o homem da gravata e o jovem rapaz já tinham alcançado o topo, enquanto a cada virada da escada ela só via mais degraus. Escutou alguns passos lentos atrás de si, e viu um rosto amigo. Era Mara, ela vinha em um ritmo parecido com o de Rosa, o que permitiu que as duas pudessem trocar algumas palavras.

— Difícil hein, Rosa.

—Cada dia mais, minha amiga. Como foi hoje?

— O mesmo, com o acréscimo que minha filha não dormiu a noite inteira e o pai continua sumido.  E você?

— Hoje eu trouxe uma água pelo menos, que já acabou. Fora isso, esses degraus estão cada dia mais pesados pra mim, viu?

Entre elas aproximou-se um senhor, já com cabelos brancos, os poucos que ainda restavam, e uma passada forte que deixava claro para elas a presença dele. As duas pararam, abrindo espaço, pois ele não parecia disposto a esperar, e os três não caberiam no mesmo espaço; certamente não ele com elas.

Ele tinha uma barriga avantajada que incrivelmente não parecia atrapalhá-lo em nada naquele lugar, e do jeito que veio se foi. As duas ficaram observando enquanto ele também desapareceu.

Rosa ia ter que parar de novo e percebeu que Mara tinha diminuído o passo para esperar a amiga.

— Pode ir Mara, amanhã a gente encontra. Eu vou dar uma pausa aqui.

—Tem certeza?

Com um aceno de mão, Rosa indicou para a amiga seguir, e se apoiou no corrimão, respirando forte.

— Vai, que uma de nós precisa chegar em casa hoje ainda, e acho que vai ser você!

Mara acenou, seu rosto também estava cansado, mas ela ainda tinha forças para continuar a subida e seguiu o conselho da amiga.

Rosa olhou para trás, e viu apenas uma escuridão para cima, mal podia ver muito longe só reparando agora que não sentia mais o sol na nuca, era noite. Ela continuou, até começar a sentir o ar frio em seu rosto. Aquilo lhe deu o ânimo final que faltava, e puxando o próprio peso com a ajuda do corrimão ela alcançou a noite vazia.

Mais alguns passos, e estava no ponto de ônibus, sem acreditar nos seus olhos quando leu o número brilhante naquele gigante azul que se aproximava. Sim, era o seu ônibus, mesmo tão cansada, ela reconhecia a sorte de chegar ali em tempo de não perdê-lo.

O ônibus de aproximou, ela esticou o braço acenando para que ele parasse, notando os pontos avermelhados, quase pretos, de sangue seco no dedo, e à medida que o gigante se aproximou, ela se ajeitou para não perder tempo e entrar nele, quando percebeu que o motorista não estava diminuindo a velocidade. Ao passar em sua frente, ela entendeu o porquê: estava lotado de jovens rapazes, executivos engravatados e senhores grisalhos. Não havia espaço para ela, ou ao menos ela não iria descobrir se havia.

Ele passou reto, e agora ela teria que aguardar mais um pouco, assim como foi para sua avó, para sua mãe e como provavelmente seria para suas filhas.













Fotografia: Luis Ritter