A Senhora Frustração
sempre vinha visitar. Era minha vizinha de porta, e passava o dia esperando uma
oportunidade para xeretar. Ainda mais depois que me assumi não tão tradicional,
ela adorava me lembrar dos perigos dessa escolha.
Ontem, eu estava
trocando de roupa quando ela bateu forte na minha porta. Tentei fingir por
alguns minutos que não estava em casa, mas havia me esquecido da luz acesa na
sala e ela insistiu com a convicção de quem tinha certeza da minha presença. Aliás,
convicção era algo que essa senhora tinha de sobra.
– Oi Dona F, está tudo
bem? – perguntei abrindo apenas uma fresta na porta.
Ela não ficou
satisfeita com a fresta, e logo empurrou, escancarando a porta para entrar. Seguiu direto para o sofá, me puxando para fazer-lhe companhia.
– Ah, minha filha, hoje
não. Tudo está tão difícil. Estou com uma dor nas costas das brabas que até meu
neto tentou ajudar fazendo uma massagem, mas ele acabou desistindo. Ficou
irritado comigo de repente e eu nem fiz nada! É um ingrato aquele lá... Mas me
conta, achei ter ouvido a voz da sua Tia Ansiedade. Ela está aqui?
– Ela foi embora uns
cinco minutos antes da senhora aparecer. Inclusive eu ia aproveitar para descansar
um pouco, se a senhora não se importar...
Tentei levantar para
indicar a porta a ela, mas não funcionou. A Dona F quando chegava geralmente
ficava até o dia seguinte. Era um escândalo de folgada.
– Ah minha filha, agora
não é hora de tirar cochilo não! Vou passar um cafezinho para gente.
– Prefiro um chá de
camomila.
– Chá? Credo, nunca
gostei de chá; aquela água quentinha, fingindo que acalma a gente.... É pura
mentira desse povo da TV. Te garanto! Melhor um café bem forte e amargo!
Me virei de costas para
ela não ver minha careta e ela veio atrás, procurando pelo que eu estava
olhando. Pela janela, a montanha antes linda agora era só um buraco de terra
gasta e explorada até o ultimo grãozinho de minério.
– Que beleza, esse
pessoal não perde tempo! Assim que tem que ser, cavar até secar, arrancar à
força o que é nosso e de mais ninguém nessa vida! – disse ela colocando água no
bule.
Um espirro abrupto saiu
de mim rasgando o ar, seguido do olhar desprezível de Dona F em minha direção. Meu
nariz de repente começou a coçar sem parar. Não podia ser. Ela já fora embora,
estava muito cedo para reaparecer. Mas aí vinha. O cheiro do perfume da
Tia Ansiedade eu sentia de longe no ar. Em dois minutos a campainha tocou.
Sem cerimônia, já foi abrindo a porta antes que minha voz saísse, carregada de desespero.
As duas velhas amigas se
cumprimentaram calorosamente enquanto eu observava, a exaustão invadindo minhas
entranhas. Em seguida, Tia Ânsia, como eu a chamava desde criança, me deu um
beijo na testa.
– Que sorte encontrá-la
aqui, Frustração! Mais uma vez nos esbarramos sem ter que combinar, uma alegria só
te ver! Essa minha sobrinha é um tesouro, não é? - disse apertando minha bochecha com força.
– Com certeza
Ansiedade. Estou passando um café, aceita uma xicrinha?
– Ah querida, aceito
sim. Só vim buscar meu casaco que esqueci, de repente lá fora esfriou que voltei correndo
com medo de chuva, mas já que você está aqui vou ficar mais um pouco.
Eu provavelmente estava
parecendo uma ameba imóvel, tamanho meu desânimo, sentada naquele sofá. Tudo o
que eu queria era conseguir refrescar minha mente naquele fim de dia, ao menos um
pouco, antes de voltar ao trabalho. Já não bastava ter que aguentar meu chefe me
ligando até nos fins de semana e, quando finalmente parecia que eu teria um descanso,
essas duas insistiam em aparecer. Quando pegavam no papo não tinha quem
tirava. Os dias seguintes à essas visitas pareciam sempre uma grande ressaca
de tanto falatório na minha cabeça, tinham assunto que não acabava mais, de
impressionar até os mais extrovertidos.
Dona F nos serviu o
café – parecia que a casa era de todo mundo menos minha – e depois as duas se
sentaram nas poltronas coloridas que ficavam de frente para o sofá. Era
engraçado, mas elas eram tão gordas que cobriam toda a parte colorida do
tecido, só sobravam à vista os pés de madeira negra e já queimadas de sol.
Peguei uma revista
discretamente, tentando me distrair das palavras afiadas que saiam de suas
bocas. Vez por outra uma me chamava querendo atenção. Eu dava momentaneamente enquanto de canto de olho, lia mais algumas palavras
da revista.
-Iiiiih Ansiedade eu já
te falei, não dá para educar mais esses meninos de hoje. Lá em casa é a mesma
coisa, e olha que já tenho netos hein! Aliás falando nisso você devia mandar
sua filha andar rápido, daqui a pouco não consegue ter mais filhos viu, tem que
aproveitar enquanto está nova! – Baixando a voz para minha tia, indicou com a
cabeça em minha direção, falando como se eu não estivesse ali, mas sabendo
muito bem que eu podia ouvi-las – Daqui a pouco ela fica igual essa aí.
– Nem me fala, essa
calma dessa menina me irrita às vezes, pelo menos a minha menina já casou... E seu
neto querida, está morando com você ainda?
– Está, aquele eu não
deixo ir embora de jeito nenhum. Sabe como é - -
O interfone tocou e de
um pulo corri para a cozinha para atender.
Me prolonguei bebendo um copo de água, saboreando gota por gota, gastando o máximo de tempo possível, até tirar aquele gosto amargo do café da Dona F da boca.
Quando voltei, o
pescoço das duas estava tão esticado tentando escutar minha conversa no
interfone que elas quase caíram das poltronas. Antes que pudessem perguntar, a
campainha tocou.
Do outro lado da porta,
a cabeça branca e o sorriso rodeado de rugas da minha Vó Esperança me encheram
o peito. Só depois de um abraço longo que ela entrou. Com o mesmo sorriso
cumprimentou a tia Ânsia e Dona F, mas as duas não conseguiram disfarçar o incômodo.
Elas nunca foram
próximas. Vovó já pedira para eu mudar daquele apartamento várias vezes, mas
toda vez que eu estava quase conseguindo um outro lugar para morar algo
acontecia e não dava certo.
– Dona F e Tia, a gente se vê outro dia certo?
As duas me olharam surpresas com a convicção repentina na voz. Pensei em arrumar qualquer desculpa para mandá-las embora mas não tive ânimo, só queria ficar a sós com minha vó e matar a saudade.
Indiquei para que elas
se levantassem e saíssem do meu apartamento como quem indica ao gado para qual direção andar. Apesar das duas rabugentas não terem gostado nada da aparição de
vovó, ao menos dessa vez me acataram. Com passos curtos e pesados passaram por nós, o cenho franzido, e se foram.
– Vó, – disse
abraçando-a bem apertado – que saudade que estava da senhora!
– Eu também querida,
mas você nunca me liga.
– É que eu não quero
incomodá-la vó.
– Besteira! Você que
esquece que eu existo de vez em quando, eu sei bem! Esquece da sua Vó
Esperança, mas eu nunca me esqueço de você, viu minha filha?! Agora vem, vou
fazer aquela sopa que você tanto ama enquanto a gente põe o papo em dia...
Conforme eu a
observava, aquele olhar doce maravilhoso que ela sempre trazia consigo, vovó
avistou as xícaras de café na mesa da sala.
– Café a essa hora da
noite? Essa sua vizinha tem cada ideia... – falou e jogou o café fora.