quinta-feira, 25 de junho de 2020

Quarentona na quarentena


Em mim, o alarme gritava: vai perder os ovos! Vai perder os ovos!
Não sei se foi sonho, mas a lembrança era forte: vai perder os ovos!

Bom dia para mim, quarentona na quarentena. Casa vazia, arrumada, como eu gostava e como eu escolhi. Abri a geladeira, peguei dois ovos e quebrei na vasilha. 
Misturei, observando o amarelo se entremear no translúcido claro, e o barulho chiado da frigideira ao receber aqueles ovos perfeitamente saudáveis. O café quente na goela umedeceu toda a secura da noite.

Menos sal e mais pimenta, para acelerar o ritmo da paradeza. Do lado de fora, na pequena varanda do apartamento, máscaras de tecido penduradas com desenhos de pintinhos amarelos, nuvens desenhadas, arco-íris coloridos.
Uma cólica remexeu minhas entranhas. Desliguei o fogão e segui para o banheiro. Enquanto urinava todo o acúmulo da noite, ouvi vindo do lado de fora as buzinas e panelas, e os gritos da ferocidade humana.

Quando me levantei, veio o sonho na lembrança ainda fresca, ao olhar praquela água avermelhada: vai perder os ovos! Vai perder os ovos! Perdi mais uma vez. Mais um mês. O som da descarga se misturou aos das buzinas, enquanto meus ovos ditos velhos se despediam ao som de ovos estragados que vagavam por aí. E para o café, ovos mexidos.