terça-feira, 17 de outubro de 2017

Uma pausa, respira: inspire-se!


                          Uma Vela para Dario

de Dalton Trevisan


Dario vinha apressado, guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma casa. Por ela escorregando, sentou-se na calçada, ainda úmida de chuva, e descansou na pedra o cachimbo. 

Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem. Dario abriu a boca, moveu os lábios, não se ouviu resposta. O senhor gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque. 

Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo tinha apagado. O rapaz de bigode pediu aos outros que se afastassem e o deixassem respirar. Abriu-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no canto da boca. 

Cada pessoa que chegava erguia-se na ponta dos pés, embora não o pudesse ver. Os moradores da rua conversavam de uma porta à outra, as crianças foram despertadas e de pijama acudiram à janela. O senhor gordo repetia que Dario sentara-se na calçada, soprando ainda a fumaça do cachimbo e encostando o guarda-chuva na parede. Mas não se via guarda-chuva ou cachimbo ao seu lado. 

A velhinha de cabeça grisalha gritou que ele estava morrendo. Um grupo o arrastou para o táxi da esquina. Já no carro a metade do corpo, protestou o motorista: quem pagaria a corrida? Concordaram chamar a ambulância. Dario conduzido de volta e recostado á parede - não tinha os sapatos nem o alfinete de pérola na gravata. 

Alguém informou da farmácia na outra rua. Não carregaram Dario além da esquina; a farmácia no fim do quarteirão e, além do mais, muito pesado. Foi largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe cobriu o rosto, sem que fizesse um gesto para espantá-las. 

Ocupado o café próximo pelas pessoas que vieram apreciar o incidente e, agora, comendo e bebendo, gozavam as delicias da noite. Dario ficou torto como o deixaram, no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso. 

Um terceiro sugeriu que lhe examinassem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e alinhados sobre a camisa branca. Ficaram sabendo do nome, idade; sinal de nascença. O endereço na carteira era de outra cidade. 

Registrou-se correria de mais de duzentos curiosos que, a essa hora, ocupavam toda a rua e as calçadas: era a polícia. O carro negro investiu a multidão. Várias pessoas tropeçaram no corpo de Dario, que foi pisoteado dezessete vezes. 

O guarda aproximou-se do cadáver e não pôde identificá-lo — os bolsos vazios. Restava a aliança de ouro na mão esquerda, que ele próprio quando vivo - só podia destacar umedecida com sabonete. Ficou decidido que o caso era com o rabecão. 

A última boca repetiu — Ele morreu, ele morreu. A gente começou a se dispersar. Dario levara duas horas para morrer, ninguém acreditou que estivesse no fim. Agora, aos que podiam vê-lo, tinha todo o ar de um defunto. 

Um senhor piedoso despiu o paletó de Dario para lhe sustentar a cabeça. Cruzou as suas mãos no peito. Não pôde fechar os olhos nem a boca, onde a espuma tinha desaparecido. Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar os cotovelos. 

Um menino de cor e descalço veio com uma vela, que acendeu ao lado do cadáver. Parecia morto há muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva. 

Fecharam-se uma a uma as janelas e, três horas depois, lá estava Dario à espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó, e o dedo sem a aliança. A vela tinha queimado até a metade e apagou-se às primeiras gotas da chuva, que voltava a cair. 


Texto extraído do livro 
"Vinte Contos Menores",  Editora Record – Rio de Janeiro, 1979.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Fazendo obra: cada dia é um 7x1 diferente

Ao som de um bolero, não, ao som da serra elétrica. Não. Demorei a entender que o que infiltrava meu cérebro tão cedo de manhã era a furadeira dos armários que chegaram. A mudança que nunca acabava, e a luz no final do túnel de uma gestação conturbada e repleta de poeira que vivi nos últimos nove meses finalmente parecia chegar ao fim. Ou assim pensei.

Ao abrir a porta não foi o choque de luz que fez minhas pupilas implorarem para serem fechadas novamente. Para cada olho que não queria abrir, um motivo com nome e sobrenome: o Pateta e o Palhaço. Ficarei devendo os sobrenomes. Sabe como é: a irritação já tinha partido para apelidos que apaziguassem a raiva. Um, dois, três, com mais calma segui para a cozinha.

Tomaram meu café, e nem para lavar a xícara. Quatro, cinco, seis. Respira.

Um estrondo cortou o ar. Mitra, minha gata, apareceu correndo, descendo as escadas como um relâmpago, fazendo suas manchas virarem apenas um borrão na sala, por alguns segundos. Quando ela parou, só pude dizer: conte até dez e respira fundo, meu amor.

Seu pelo eriçado abaixou um pouco com o som da minha voz, no entanto deixou os rastros na espinha dorsal da gata, assim como os meus. Não ia dar para fugir, eu ia ter que encarar. No caminho para onde veio o estrondo, pela porta aberta do quarto pude ver que já haviam instalado as portas dos armários do meu quarto. Bom sinal, eu poderia ao menos trocar de roupa e adiar por alguns minutos o encontro. As portas pretas, altas, bonitas e imponentes, novinhas. Cheias de arranhados brancos. Como? Sim. Difícil. Beirando o impossível. Alguém poderia argumentar: Acontece! Foi o que eu pensei também, na primeira vez! Agora, na terceira, nem tanto...

Meu vizinho ainda estava eufórico por causa do jogo do Cruzeiro que acontecera na noite anterior. O escutei falando ao telefone com um amigo, urros de satisfação com o gol que bateu na trave, e contra todas as chances a bola entrou, e o campeão voltou. Não saberia ao certo descrever. Só sei que três vezes vieram trocar as portas manchadas. Por outras três portas arranhadas.

Troquei-me e subi cada degrau como se fosse o Everest, em direção aos armários da sala. Faltando três para chegar, congelei, como se uma avalanche se aproximasse. Não estava preparada e sabia. Sete, oito, nove. Com um impulso contra todo o instinto em meu corpo de fugir para sobreviver subi mais um degrau, e o outro, e o outro.

Não sei se o choque que foi grande demais, mas a expectativa versus a realidade contrastou de tal maneira que até engasguei. Por sorte, o corrimão ao meu lado impediu que eu caísse escada abaixo antes de ver um milagre.  Um belo armário cobria a parede da sala, nenhuma porta arranhada. Nenhuma mancha. Boa escolha, bela cor, excelente tamanho. Parecia que eu também, depois de meses, havia feito um gol.

Foi quando notei: o Pateta e o Palhaço estavam do lado, sorrindo meia boca, tentando disfarçar algo indisfarçável. Atrás deles estava a porta, sim, eu disse uma porta inteira de vidro, rachada ao meio de fora a fora, segurada apenas pela boa vontade do ar.

Não importava o Cruzeiro, o Atlético, ou os fulanos todos do futebol. Eu estava vivendo meu próprio 7 a 1, e ele estava sem data pra acabar.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

O Tal do Tempo

Um dia fiquei sabendo que meu avô estava morrendo. Era oficial. 
Não estranhe minha maneirar de falar mas, com 98 anos, era impossível não ficarem todos com uma pontinha de si aguardando o finalmente.

Em julho fui visitá-lo e por coincidência Dona Aracy morreu naquele fim de semana. Era uma senhora, conhecida de todos da cidade e amiga de vários. Tentamos não contar pro vovô o acontecimento, mas sabe como é cidade de interior: quando menos se espera, um carro de som BERRA na porta de todas as casas o acontecimento e o agradecimento da família. Conseguimos desviá-lo das primeiras vezes que o carro com o anúncio passou na casa de vô, mas na décima vez não teve jeito.
“Aracy morreu? ...”

O silêncio reinou na sala, não tinha mais como negar, e sendo mais uma de suas amigas, conhecidos de longa data, e das últimas que restavam pra compartilhar de uma vida distante, outro século, outra história, só nos restou mesmo o silêncio.
Não esqueço dele parado no meio da sala apoiado em sua bengala, e a feição que deixava claro seu pensamento: “Mais um...”

Alguns meses depois voltei lá para passar o natal com a família e, claro, com o mais importante de todos, meu avô.
Nossa família é enorme e, entre barulhos, risadas, cervejas e leitões à pururuca escutava-se muitos sussurros de “...esse deve ser nosso último natal aqui...”. 
Do vovô: só veio o silêncio.

Em sua poltrona já gasta e sem cor, ele fez uso de poucas e raras palavras. Não por dificuldade! Meu avô era feito de 98 anos de história e uma língua afiadíssima. Tão afiada que na hora de despedirmos, meu pai disse: “Setembro estou de volta, Seu Florival”, no que vô rebateu: “Você fique à vontade para voltar, mas eu já terei cascado fora!”
Eu ri, achei hilário. Talvez tenha sido um riso de nervoso também.  

No dia anterior havia comentado com um tio que não preciso viver tanto assim, fato que sempre acreditei. (Sou um tanto quanto melancólica, dessa tal de geração Rivotril, com todas as facilidades do mundo e eternamente numa crise existencial.)

Ouvi então, a única resposta que mudou meu pensamento até hoje, talvez por ter vindo com uma sinceridade intensa de quem já chegou nesse ponto: “Quando você chegar nos 60 vai ver que quer sim, viver o máximo de tempo que te permitirem.”
No silêncio do vô, talvez fosse isso que pairava no ar: Um desejo por mais tempo, misturado na exaustão de estar aqui há tanto tempo.

Em fevereiro ele se foi. Foi contar uns bons causos para Dona Aracy, e matar a saudade da minha avó, que há muito o aguardava. 
E pra gente, resta esperar, e lembrar sua risada que ecoa, lá longe, em Espinosa.

"As andorinhas voltaram
E eu também voltei
Pousar no velho ninho
Que um dia aqui deixei..."


segunda-feira, 15 de maio de 2017

Por que só eu falo o tempo todo???


Ok, pedi aos universitários para ajudar nessa!!

Dos primeiros leitores do livro Nem Fred explica recebi uma resenha do livro vinda de outros olhos, porque cada um vê de um jeito, né! 

E veio tão sincera e generosa que eu quase chorei.

“Depois de uma tragédia familiar, um filho adulto se vê diante de seus traumas devido ao ocorrido e a dificuldade de seguir com a vida e seus relacionamentos, trabalho, sentimentos internos e dilacerantes que o faz percorrer com resistência esses conflitos internos.
Nesta história farta de sentimentos e expectativa, somos levados ao desejo do personagem de resolver seus mais íntimos desejos, bloqueados até então devido à força de seus sentidos e, ao mesmo tempo, à racionalidade da vida cotidiana.

Uma narrativa poderosa e repleta de grande mobilidade, onde urge como fogo a necessidade mais complexa do ser humano, de sentir a chama da vida e a liquidez de seus temores para chegar numa melhor forma de viver e sentir, com o amor de quem o conhece e o esclarecimento dos mais altos sentimentos humanos”. 
Marisa Antunes é psicóloga e leitora voraz.




sexta-feira, 5 de maio de 2017

Por que Nem Fred Explica?


Se nem ele sabe, imagina eu.

Mas o Fred da pergunta é do outro quase xará mesmo. Só uma brincadeira de quem é filha de psicanalista. Brincadeira que começou como risada e com o título, e acabou séria em forma de livro.

De um dia, uma notícia de gente que eu nem conhecia, e aí o mundo sacudiu, a perspectiva mudou, e o choque assombrou o sono. Essa escrita doeu. Em vários momentos, mesmo com suas poucas páginas.

É que ainda não controlo meus livros. OK! Voltamos aos primeiros “Por quês”, esse momento pede um clichê: Escrevo sobre o que mexe comigo. A Maria, de “Em um Canto da Vida”, nasceu de uma coisa boa, de uma sala de espera e uma imagem de uma floresta.

Já o Fred nasceu de uma notícia bem negativa, que eu não posso contar sem falar demais e estragar o livro para quem ainda não leu. O bom da escrita é que no final, independente de ter final feliz ou não, é sempre bom. Ge-ne-ra-li-zei sim! Sempre. Pode não virar best-seller, aliás, pode nem virar livro de papel, mas vira a gente de cabeça para baixo e recompõe tudo no final.

Arranca um pedaço e deixa outro, maior e mais interessante no lugar.


Por isso: Nem Fred Explica!!!!


terça-feira, 2 de maio de 2017

Por que dos livros? Para que escrever?

Tem pergunta que não tem resposta, e outras perguntas tem só umas mil.
Nesse caso: marque todas as alternativas acima, esse é o caso!
Não houve planejamento, nem ambição. Houve um passatempo que virou forma de comunicação e depois transformou e criou raiz em mim. Um jeito de expressar, de conversar, e o velho viajar no nível mais pleno. 
E mais barato, né?!!

Nem sempre é bom, e sempre é ótimo. Mas é que às vezes dói. Dói uma dor boa, de conversar com a terapeuta, e dói uma dor sofrida, suada, de discutir consigo mesmo. Como aquela resposta que você não deu durante a discussão e depois se arrependeu, ensaiando de frente para o espelho o que devia ter sido dito. 
Tem vez que no papel a resposta sai. E no papel dói mesmo assim, te faz levantar a mão para o céu e agradecer por ter ficado calado. 

É como fotografar, e olhar para a foto anos depois. 
Lembrar-se de tudo que te levou para aquela fotografia e enxergar o todo que não foi dito pelo sorriso estampado, mas sim pelas sombras discretas no fundo da imagem.





quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

As Senhoras


A Senhora Frustração sempre vinha visitar. Era minha vizinha de porta, e passava o dia esperando uma oportunidade para xeretar. Ainda mais depois que me assumi não tão tradicional, ela adorava me lembrar dos perigos dessa escolha.

Ontem, eu estava trocando de roupa quando ela bateu forte na minha porta. Tentei fingir por alguns minutos que não estava em casa, mas havia me esquecido da luz acesa na sala e ela insistiu com a convicção de quem tinha certeza da minha presença. Aliás, convicção era algo que essa senhora tinha de sobra.

– Oi Dona F, está tudo bem? – perguntei abrindo apenas uma fresta na porta.

Ela não ficou satisfeita com a fresta, e logo empurrou, escancarando a porta para entrar. Seguiu direto para o sofá, me puxando para fazer-lhe companhia.

– Ah, minha filha, hoje não. Tudo está tão difícil. Estou com uma dor nas costas das brabas que até meu neto tentou ajudar fazendo uma massagem, mas ele acabou desistindo. Ficou irritado comigo de repente e eu nem fiz nada! É um ingrato aquele lá... Mas me conta, achei ter ouvido a voz da sua Tia Ansiedade. Ela está aqui?

– Ela foi embora uns cinco minutos antes da senhora aparecer. Inclusive eu ia aproveitar para descansar um pouco, se a senhora não se importar...

Tentei levantar para indicar a porta a ela, mas não funcionou. A Dona F quando chegava geralmente ficava até o dia seguinte. Era um escândalo de folgada.

– Ah minha filha, agora não é hora de tirar cochilo não! Vou passar um cafezinho para gente.

– Prefiro um chá de camomila.

– Chá? Credo, nunca gostei de chá; aquela água quentinha, fingindo que acalma a gente.... É pura mentira desse povo da TV. Te garanto! Melhor um café bem forte e amargo!

Me virei de costas para ela não ver minha careta e ela veio atrás, procurando pelo que eu estava olhando. Pela janela, a montanha antes linda agora era só um buraco de terra gasta e explorada até o ultimo grãozinho de minério.

– Que beleza, esse pessoal não perde tempo! Assim que tem que ser, cavar até secar, arrancar à força o que é nosso e de mais ninguém nessa vida! – disse ela colocando água no bule.

Um espirro abrupto saiu de mim rasgando o ar, seguido do olhar desprezível de Dona F em minha direção. Meu nariz de repente começou a coçar sem parar. Não podia ser. Ela já fora embora, estava muito cedo para reaparecer. Mas aí vinha. O cheiro do perfume da Tia Ansiedade eu sentia de longe no ar. Em dois minutos a campainha tocou. 
Sem cerimônia, já foi abrindo a porta antes que minha voz saísse, carregada de desespero.

As duas velhas amigas se cumprimentaram calorosamente enquanto eu observava, a exaustão invadindo minhas entranhas. Em seguida, Tia Ânsia, como eu a chamava desde criança, me deu um beijo na testa.

– Que sorte encontrá-la aqui, Frustração! Mais uma vez nos esbarramos sem ter que combinar, uma alegria só te ver! Essa minha sobrinha é um tesouro, não é? - disse apertando minha bochecha com força.

– Com certeza Ansiedade. Estou passando um café, aceita uma xicrinha?

– Ah querida, aceito sim. Só vim buscar meu casaco que esqueci, de repente lá fora esfriou que voltei correndo com medo de chuva, mas já que você está aqui vou ficar mais um pouco.

Eu provavelmente estava parecendo uma ameba imóvel, tamanho meu desânimo, sentada naquele sofá. Tudo o que eu queria era conseguir refrescar minha mente naquele fim de dia, ao menos um pouco, antes de voltar ao trabalho. Já não bastava ter que aguentar meu chefe me ligando até nos fins de semana e, quando finalmente parecia que eu teria um descanso, essas duas insistiam em aparecer. Quando pegavam no papo não tinha quem tirava. Os dias seguintes à essas visitas pareciam sempre uma grande ressaca de tanto falatório na minha cabeça, tinham assunto que não acabava mais, de impressionar até os mais extrovertidos.

Dona F nos serviu o café – parecia que a casa era de todo mundo menos minha – e depois as duas se sentaram nas poltronas coloridas que ficavam de frente para o sofá. Era engraçado, mas elas eram tão gordas que cobriam toda a parte colorida do tecido, só sobravam à vista os pés de madeira negra e já queimadas de sol.

Peguei uma revista discretamente, tentando me distrair das palavras afiadas que saiam de suas bocas. Vez por outra uma me chamava querendo atenção. Eu dava momentaneamente enquanto de canto de olho, lia mais algumas palavras da revista.

-Iiiiih Ansiedade eu já te falei, não dá para educar mais esses meninos de hoje. Lá em casa é a mesma coisa, e olha que já tenho netos hein! Aliás falando nisso você devia mandar sua filha andar rápido, daqui a pouco não consegue ter mais filhos viu, tem que aproveitar enquanto está nova! – Baixando a voz para minha tia, indicou com a cabeça em minha direção, falando como se eu não estivesse ali, mas sabendo muito bem que eu podia ouvi-las – Daqui a pouco ela fica igual essa aí.

– Nem me fala, essa calma dessa menina me irrita às vezes, pelo menos a minha menina já casou... E seu neto querida, está morando com você ainda?

– Está, aquele eu não deixo ir embora de jeito nenhum. Sabe como é - -

O interfone tocou e de um pulo corri para a cozinha para atender.  Me prolonguei bebendo um copo de água, saboreando gota por gota, gastando o máximo de tempo possível, até tirar aquele gosto amargo do café da Dona F da boca.

Quando voltei, o pescoço das duas estava tão esticado tentando escutar minha conversa no interfone que elas quase caíram das poltronas. Antes que pudessem perguntar, a campainha tocou.

Do outro lado da porta, a cabeça branca e o sorriso rodeado de rugas da minha Vó Esperança me encheram o peito. Só depois de um abraço longo que ela entrou. Com o mesmo sorriso cumprimentou a tia Ânsia e Dona F, mas as duas não conseguiram disfarçar o incômodo.

Elas nunca foram próximas. Vovó já pedira para eu mudar daquele apartamento várias vezes, mas toda vez que eu estava quase conseguindo um outro lugar para morar algo acontecia e não dava certo.

– Dona F e Tia, a gente se vê outro dia certo? 

As duas me olharam surpresas com a convicção repentina na voz. Pensei em arrumar qualquer desculpa para mandá-las embora mas não tive ânimo, só queria ficar a sós com minha vó e matar a saudade.

Indiquei para que elas se levantassem e saíssem do meu apartamento como quem indica ao gado para qual direção andar. Apesar das duas rabugentas não terem gostado nada da aparição de vovó, ao menos dessa vez me acataram. Com passos curtos e pesados passaram por nós, o cenho franzido, e se foram.

– Vó, – disse abraçando-a bem apertado – que saudade que estava da senhora!

– Eu também querida, mas você nunca me liga.

– É que eu não quero incomodá-la vó.

– Besteira! Você que esquece que eu existo de vez em quando, eu sei bem! Esquece da sua Vó Esperança, mas eu nunca me esqueço de você, viu minha filha?! Agora vem, vou fazer aquela sopa que você tanto ama enquanto a gente põe o papo em dia...

Conforme eu a observava, aquele olhar doce maravilhoso que ela sempre trazia consigo, vovó avistou as xícaras de café na mesa da sala.


– Café a essa hora da noite? Essa sua vizinha tem cada ideia... – falou e jogou o café fora.