terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Degraus


Eram tantos degraus que já havia subido, que Rosa tivera que parar três vezes para recuperar o fôlego, mas a escada não chegava ao fim. Sua mão suada se misturava ao suor de tanta gente que já passara por ali, cada um com a oleosidade vinda do apoio no ônibus ou da cadeira do metrô até chegar naquele corrimão, segurando-se para não tropeçar nos degraus e cair naquele chão enlameado, ou esbarrar nas paredes sujas de pichação. O óleo de sua mão e o de mil mãos na sua a fazia largar o corrimão toda hora, mas acabava voltando para ele com os tropeços pelo caminho. Virou mais uma esquina da escada, e mais um lance de degraus apareceu em sua frente. Sentia o sol na nuca fazendo as gotas de suor escorrerem pelo pescoço até chegar na sua regata já úmida na região do tronco. Olhou para cima ainda sem conseguir enxergar o final daquilo.

Do seu lado passou um rapaz, jovem, mas não tão mais jovem que Rosa. Subiu os degraus de dois em dois ao seu lado, e antes que ela conseguisse olhar para o alto ele já havia desaparecido.

Ela não queria, pois sentia que nunca chegaria em casa, estava com fome, cansada, mas precisava parar. Por sorte nesse dia, voltando do trabalho seu patrão pediu que ela jogasse fora uma garrafa de água, e ela ao invés de fazer como mandada, encheu a garrafa e colocou na bolsa. A água a essa hora já estava quente, mas bastaria para aquele momento.

Deu um longo gole, e voltou.  Tinha a impressão que sua mão deveria estar sujando mais ainda aquele corrimão e não o inverso, porém ela precisava de um apoio. Esticou o braço sem olhar para trás e acabou trombando a mão com um homem engravatado que subia rápido a escada. Ela sentiu a unha enroscando em um fio solto do terno do homem, e sem parar ele continuou sua ascensão pela escada, levando junto um pedaço da unha de Rosa. Foi o tempo de sentir apenas o ardor do golpe. Ele não fizera de propósito, claro, mas nem ela esbarrou nele de propósito, e de alguma maneira ele desapareceu satisfeito sabe-se lá para onde enquanto agora, além de ter que subir aqueles degraus com calor, cansada, com fome, ainda tinha um dedo ensanguentado lhe acompanhando.

Que dia.

Pensou se o homem da gravata e o jovem rapaz já tinham alcançado o topo, enquanto a cada virada da escada ela só via mais degraus. Escutou alguns passos lentos atrás de si, e viu um rosto amigo. Era Mara, ela vinha em um ritmo parecido com o de Rosa, o que permitiu que as duas pudessem trocar algumas palavras.

— Difícil hein, Rosa.

—Cada dia mais, minha amiga. Como foi hoje?

— O mesmo, com o acréscimo que minha filha não dormiu a noite inteira e o pai continua sumido.  E você?

— Hoje eu trouxe uma água pelo menos, que já acabou. Fora isso, esses degraus estão cada dia mais pesados pra mim, viu?

Entre elas aproximou-se um senhor, já com cabelos brancos, os poucos que ainda restavam, e uma passada forte que deixava claro para elas a presença dele. As duas pararam, abrindo espaço, pois ele não parecia disposto a esperar, e os três não caberiam no mesmo espaço; certamente não ele com elas.

Ele tinha uma barriga avantajada que incrivelmente não parecia atrapalhá-lo em nada naquele lugar, e do jeito que veio se foi. As duas ficaram observando enquanto ele também desapareceu.

Rosa ia ter que parar de novo e percebeu que Mara tinha diminuído o passo para esperar a amiga.

— Pode ir Mara, amanhã a gente encontra. Eu vou dar uma pausa aqui.

—Tem certeza?

Com um aceno de mão, Rosa indicou para a amiga seguir, e se apoiou no corrimão, respirando forte.

— Vai, que uma de nós precisa chegar em casa hoje ainda, e acho que vai ser você!

Mara acenou, seu rosto também estava cansado, mas ela ainda tinha forças para continuar a subida e seguiu o conselho da amiga.

Rosa olhou para trás, e viu apenas uma escuridão para cima, mal podia ver muito longe só reparando agora que não sentia mais o sol na nuca, era noite. Ela continuou, até começar a sentir o ar frio em seu rosto. Aquilo lhe deu o ânimo final que faltava, e puxando o próprio peso com a ajuda do corrimão ela alcançou a noite vazia.

Mais alguns passos, e estava no ponto de ônibus, sem acreditar nos seus olhos quando leu o número brilhante naquele gigante azul que se aproximava. Sim, era o seu ônibus, mesmo tão cansada, ela reconhecia a sorte de chegar ali em tempo de não perdê-lo.

O ônibus de aproximou, ela esticou o braço acenando para que ele parasse, notando os pontos avermelhados, quase pretos, de sangue seco no dedo, e à medida que o gigante se aproximou, ela se ajeitou para não perder tempo e entrar nele, quando percebeu que o motorista não estava diminuindo a velocidade. Ao passar em sua frente, ela entendeu o porquê: estava lotado de jovens rapazes, executivos engravatados e senhores grisalhos. Não havia espaço para ela, ou ao menos ela não iria descobrir se havia.

Ele passou reto, e agora ela teria que aguardar mais um pouco, assim como foi para sua avó, para sua mãe e como provavelmente seria para suas filhas.













Fotografia: Luis Ritter

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