Eram
tantos degraus que já havia subido, que Rosa tivera que parar três vezes para
recuperar o fôlego, mas a escada não chegava ao fim. Sua mão suada se misturava
ao suor de tanta gente que já passara por ali, cada um com a oleosidade vinda
do apoio no ônibus ou da cadeira do metrô até chegar naquele corrimão,
segurando-se para não tropeçar nos degraus e cair naquele chão enlameado, ou
esbarrar nas paredes sujas de pichação. O óleo de sua mão e o de mil mãos na
sua a fazia largar o corrimão toda hora, mas acabava voltando para ele com os
tropeços pelo caminho. Virou mais uma esquina da escada, e mais um lance de
degraus apareceu em sua frente. Sentia o sol na nuca fazendo as gotas de suor
escorrerem pelo pescoço até chegar na sua regata já úmida na região do tronco.
Olhou para cima ainda sem conseguir enxergar o final daquilo.
Do
seu lado passou um rapaz, jovem, mas não tão mais jovem que Rosa. Subiu os
degraus de dois em dois ao seu lado, e antes que ela conseguisse olhar para o
alto ele já havia desaparecido.
Ela
não queria, pois sentia que nunca chegaria em casa, estava com fome, cansada,
mas precisava parar. Por sorte nesse dia, voltando do trabalho seu patrão pediu
que ela jogasse fora uma garrafa de água, e ela ao invés de fazer como mandada,
encheu a garrafa e colocou na bolsa. A água a essa hora já estava quente, mas
bastaria para aquele momento.
Deu
um longo gole, e voltou. Tinha a
impressão que sua mão deveria estar sujando mais ainda aquele corrimão e não o
inverso, porém ela precisava de um apoio. Esticou o braço sem olhar para trás e
acabou trombando a mão com um homem engravatado que subia rápido a escada. Ela
sentiu a unha enroscando em um fio solto do terno do homem, e sem parar ele continuou sua
ascensão pela escada, levando junto um pedaço da unha de Rosa. Foi o tempo de sentir apenas o ardor do golpe. Ele não fizera de propósito, claro, mas nem ela
esbarrou nele de propósito, e de alguma maneira ele desapareceu satisfeito
sabe-se lá para onde enquanto agora, além de ter que subir aqueles degraus com
calor, cansada, com fome, ainda tinha um dedo ensanguentado lhe acompanhando.
Que
dia.
Pensou
se o homem da gravata e o jovem rapaz já tinham alcançado o topo, enquanto a
cada virada da escada ela só via mais degraus. Escutou alguns passos lentos
atrás de si, e viu um rosto amigo. Era Mara, ela vinha em um ritmo parecido com
o de Rosa, o que permitiu que as duas pudessem trocar algumas palavras.
—
Difícil hein, Rosa.
—Cada
dia mais, minha amiga. Como foi hoje?
—
O mesmo, com o acréscimo que minha filha não dormiu a noite inteira e o pai
continua sumido. E você?
—
Hoje eu trouxe uma água pelo menos, que já acabou. Fora isso, esses degraus
estão cada dia mais pesados pra mim, viu?
Entre
elas aproximou-se um senhor, já com cabelos brancos, os poucos que ainda
restavam, e uma passada forte que deixava claro para elas a presença dele. As
duas pararam, abrindo espaço, pois ele não parecia disposto a esperar, e os três
não caberiam no mesmo espaço; certamente não ele com elas.
Ele
tinha uma barriga avantajada que incrivelmente não parecia atrapalhá-lo em nada
naquele lugar, e do jeito que veio se foi. As duas ficaram observando enquanto
ele também desapareceu.
Rosa
ia ter que parar de novo e percebeu que Mara tinha diminuído o passo para
esperar a amiga.
—
Pode ir Mara, amanhã a gente encontra. Eu vou dar uma pausa aqui.
—Tem
certeza?
Com
um aceno de mão, Rosa indicou para a amiga seguir, e se apoiou no corrimão,
respirando forte.
—
Vai, que uma de nós precisa chegar em casa hoje ainda, e acho que vai ser você!
Mara
acenou, seu rosto também estava cansado, mas ela ainda tinha forças para
continuar a subida e seguiu o conselho da amiga.
Rosa
olhou para trás, e viu apenas uma escuridão para cima, mal podia ver muito
longe só reparando agora que não sentia mais o sol na nuca, era noite. Ela
continuou, até começar a sentir o ar frio em seu rosto. Aquilo lhe deu o ânimo
final que faltava, e puxando o próprio peso com a ajuda do corrimão ela
alcançou a noite vazia.
Mais
alguns passos, e estava no ponto de ônibus, sem acreditar nos seus olhos quando
leu o número brilhante naquele gigante azul que se aproximava. Sim, era o seu
ônibus, mesmo tão cansada, ela reconhecia a sorte de chegar ali em tempo de não
perdê-lo.
O
ônibus de aproximou, ela esticou o braço acenando para que ele parasse, notando
os pontos avermelhados, quase pretos, de sangue seco no dedo, e à medida que o
gigante se aproximou, ela se ajeitou para não perder tempo e entrar nele, quando
percebeu que o motorista não estava diminuindo a velocidade. Ao passar em sua
frente, ela entendeu o porquê: estava lotado de jovens rapazes, executivos engravatados
e senhores grisalhos. Não havia espaço para ela, ou ao menos ela não iria
descobrir se havia.
Ele
passou reto, e agora ela teria que aguardar mais um pouco, assim como foi para
sua avó, para sua mãe e como provavelmente seria para suas filhas.
Fotografia: Luis Ritter
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